FERNANDO PESSOA

            Há nos dias de hoje, por parte dos nossos alunos um preconceito estabelecido no que diz respeito a Fernando Pessoa e à análise da sua obra; será por medo, por preguiça, ou por simples influência e condicionalismos daqueles que já o conheceram e espalham uma visão deturpada e extremamente simplista da poesia deste grande autor. Esta caracterização já pré-concebida deve ser desmistificada, já que o escritor da Mensagem não poderia ser o indivíduo que mais se liga à nossa interioridade através do mistério das palavras; aliás, o seu génio está em ter conseguido dizer em palavras o que atormenta a alma de cada um de nós. Na verdade, ao analisar Fernando Pessoa, estamos a descobrirmo-nos aos poucos, visto que a sua personalidade denota uma tal mundividência que abarca todos os tipos de sentimentos em todas as épocas da História. O poeta que tanto nos assusta conhece-nos mais e melhor do que nós próprios podemos imaginar e é por isso que eu digo que a sua literatura é psicanalista e totalmente reveladora.

            Todavia, é óbvio que a obra de um autor deve ser compreendida no contexto histórico, social e sócio-cultural do seu tempo. Segundo afirma Álvaro de Campos num artigo intitulado “Ultimatum”, publicado na revista Portugal Futurista, em 1917, “Nenhum artista deverá ter só uma personalidade”. Pode dizer-se que Fernando Pessoa é a individualidade que mais irá justificar esta expressão. Inserido numa época de crise, num período que marcou a segunda metade do século XIX, altura do Ultimatum Inglês, a 11 de Janeiro de 1890, e, depois os primeiros anos do século XX, regicídio (2 de Fevereiro de 1908), em que o indivíduo, perturbado por uma ruptura interior aguda, não acredita em nada, Fernando Pessoa dá vida a três heterónimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Partindo de um “eu” interior, atravessado por rupturas ideológicas, os heterónimos ganham identidades únicas. Este processo não é de encobrimento do nome próprio do sujeito, mas um desdobramento do “eu” interior que o vai ajudar a conhecer-se e em que os outros nomes que aparecem se distinguem do ortónimo. Com personalidades próprias, dotados de características psicológicas e ideológicas independentes, os heterónimos possuem um discurso autónomo e extremamente característico, que se pode identificar sem sombra de dúvidas, embora se observe nele uma linha condutora que não pode deixar de existir, por mais que Fernando Pessoa a tente disfarçar.

            Relativamente aos três heterónimos, nota-se que, para além de possuírem filosofias existenciais e identidades próprias, têm igualmente uma vida literária independente: escrevem uns sobre os outros, comentam e, até mesmo, criticam o trabalho dos restantes “colegas”; assim, encontramos Álvaro de Campos debruçado sobre o trabalho do “mestre” Caeiro, tanto analisando como comentando criticamente. Este trio de personalidades distintas apresenta uma história, uma biografia, embora não se possa, de maneira nenhuma, separar a heteronímia da ficção e é por esse motivo que Fernando Pessoa se torna num escritor com uma fama de “doido”; no entanto, aquilo que ele passou para papel só vem confirmar a sua normalidade como pessoa que possui problemas, alegrias e tristezas: ele soube e conseguiu, mais do que os outros, exorcizar esses fantasmas de maneira a não os ignorar, mas a aceitá-los de modo a poder resolvê-       -los.

            Segundo o próprio Fernando Pessoa, na carta a Adolfo de Casais Monteiro, sobre a génese dos heterónimos, redigida em Lisboa, a 13 de Janeiro de 1935, Alberto Caeiro foi o primeiro a nascer na sua mente; era um poeta que quase não teve escolarização, a não ser o ensino primário, e que, embora tivesse nascido em Lisboa, se mudou para o campo, onde viveu a maior parte da sua vida. Ricardo Reis foi o heterónimo que se seguiu na sua génese, nascendo como médico; a sua educação era mais esmerada que a do seu “mestre” Caeiro, sendo que era versado em latim. Finalmente, Álvaro de Campos era um engenheiro, com uma educação “vulgar de lyceu”, tendo estudado Engenharia Mecânica e Naval na Escócia.

Como se pode observar, cada um destes heterónimos possui as suas próprias identidades e ideologias literárias, semelhantes e distintas dos outros dois. De novo Álvaro de Campos afirma no artigo já citado: “o maior artista será o que menos se definir, e o que escrever em mais géneros com mais contradições e dissemelhanças”; assim o conseguiu Fernando Pessoa. O seu interior separou-se, dividiu-se em diversas individualidades que não ele-mesmo, sem que com isso se encontrasse a definir a sua própria interioridade. Esta é uma situação complexa, visto que, enquanto que a pseudonímia se esgota e se limita à adopção de um nome falso por razões de várias ordens, a heteronímia refere-se à atribuição de uma identidade própria a um sujeito poético, dotada de características psicológicas, ideológicas e culturais independentes. A heteronímia deve ser encarada como signo da época de crise que se reflecte de forma particular no enunciador e que surge atravessada por rupturas ideológicas irreversíveis. O próprio Fernando Pessoa sugere que o ortónimo não é menos heterónimo que os outros e é diferente dele mesmo. A obra deste escritor reflecte um sujeito em crise, determinado por rupturas que não pode ignorar, e que prefere enfrentar, dando-lhes um estado físico, emocional e pessoal independente.

Fernando Pessoa tem consciência do que estava a fazer com a heteronímia e sabia que não era um processo inovador, no entanto, não deixou de marcar a sua diferença. Frequentemente, para explicar os mecanismos da heteronímia, utiliza o exemplo de Shakespeare. O escritor inglês criou Hamlet e essa é uma personagem com pensamentos e sentimentos próprios, diferenciados do autor ele-mesmo; é uma personagem construída dentro de Shakespeare, mas que é distinta de si, tal como a heteronímia que corresponde à construção de várias personagens distintas umas das outras e do próprio Fernando Pessoa.

Esta anulação do “eu”, conseguida pela despersonalização e divisão da alma, é o que torna Fernando Pessoa a individualidade máxima no que diz respeito à heteronímia; não se pode confundir o grande escritor da Mensagem com uma figura disfuncional da sociedade em crise, mas sim associá-lo a essa crise que se vai manifestar no interior, agravando o próprio estado da pessoa e obrigando-a a consciencializar as suas “falhas” psicológicas e a fazer-lhes frente, apresentando, assim, ao leitor um exemplo do que deve ser a nossa luta diária com os nossos problemas, mostrando-nos que, por mais que nos pareçam impossíveis de resolver, podemos sempre exteriorizá-los, tornando-os independentes e lógicos. Para o escritor do Marinheiro, “O poeta superior diz o que efectivamente sente. O poeta médio diz o que decide sentir. O poeta inferior diz o que julga que deve sentir. / Nada disto tem a ver com a sinceridade. Em primeiro lugar, ninguém sabe o que verdadeiramente sente: é possível sentirmos alívio com a morte de alguém querido, e julgar que estamos sentindo pena, porque é isso que se deve sentir nessas ocasiões. A maioria da gente sente convencionalmente, embora com a maior sinceridade humana; o que não sente é com qualquer espécie ou grau de sinceridade intelectual, e essa é que importa no poeta. Tanto assim é que creio que haja, em toda a já longa história da Poesia, mais do que uns quatro ou cinco poetas, que dissessem o que verdadeiramente, e não só efectivamente, sentiam […]. / O meu mestre Caeiro foi o único poeta inteiramente sincero do mundo.” Os sentimentos que nos assolam podem ser repartidos, despersonalizados e analisados, depois de terem passado por um processo cognitivo que os transforma numa matéria científica, física, à qual se pode fazer experiências; no entanto, e embora esse seja o processo do poeta superior, não é o objectivo final de Fernando Pessoa, esse encontra-se nos versos naturais e, à primeira vista, desinteressados, do mestre Alberto Caeiro, já que este não sente, porque não pensa, simplesmente “é”, o que o torna mais próximo dos verdadeiros sentimentos que a natureza nos apresenta sem que tenhamos consciência disso. Observa-se, então, um desejo de Fernando Pessoa ortónimo de tentar chegar a essa inconsciência benéfica, quando ele afirma “Ela canta, pobre ceifeira […] // Ah, canta, canta sem razão! […] // Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso […]”.

No entanto, até o próprio Alberto Caeiro, que tenta convencer-nos da ingenuidade do seu pensamento, é, em última análise, um poeta abstracto que se insurge contra as próprias abstracções, caindo no erro de as negar, visto que a própria arte da poesia implica a avaliação inevitável da alma. Quando Fernando Pessoa afirma, então, “Ter a tua alegre inconsciência / E a consciência disso […]”, está a convencer-se do facto de não poder nunca chegar à sensação pura, sem passar pela crítica e pela argumentação.

A tristeza e frustração gerais de Pessoa, características da época que se vivia no país, ultrapassam a fronteira do ortónimo e invadem o “território” dos seus companheiros de vida e de angústia pela sua passagem na vida, por intermédio da expressão do cepticismo (Álvaro de Campos), pela sensação do tédio e pela ideia da solidão e do desamparo (Álvaro de Campos), e pelo afastamento dos sentimentos extremos (Ricardo Reis – Carpe Diem (objectivo dos epicuristas) e Sustine et abstine (objectivo dos estóicos) - e Alberto Caeiro). Como muitos de nós, a sua intuição, associada à sensibilidade poética, torna o dia-a-dia mais complexo pela inesgotável acção do cérebro que leva à ilogicidade do quotidiano e, até mesmo, do próprio Futuro: “Aqui à beira do rio / Sossego sem ter razão. / Este seu correr vazio / Figura, anónimo e frio, / A vida vivida em vão.”Sem uma razão para existir, o ser humano, pleno de emoções inatas, rende-se à passagem do tempo como mais uma etapa de um caminho que se inicia à nascença e que se dirige inevitavelmente para a morte; deste modo, e segundo Fernando Pessoa, não somos mais do que casulos efémeros que apenas devem tirar da vida aquilo que ela lhes dá, sem a questionarem. Obviamente que, perante este objectivo, surge a luta interior de uma alma que não compreende o tédio e o sofrimento que continuamente experiencia, mesmo assim.
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